Sushi de feijão e shoyu de tucupi: como imigrantes japoneses recriaram pratos típicos na Amazônia
Os japoneses que imigraram para o Amazonas depois da Segunda Guerra Mundial apelaram à criatividade para conseguir fazer as tradicionais receitas de sua rica culinária. Ao chegar em um local estranho e distante da terra natal, substituíram a soja pela mandioca e transformaram o mamão em picles e saladas, por exemplo.
Os relatos dessas invenções culinárias foram coletados oralmente pela pesquisadora Linda Midori Tsuji Nishikido, da Universidade de São Paulo (USP), para sua dissertação de mestrado sobre os hábitos alimentares dos imigrantes japoneses no Amazonas entre 1953 e 1967. Ela ouviu seus próprios pais, parentes e amigos, que chegaram ao Brasil naquele época e, hoje, estão com idades entre 60 e 100 anos.
Linda chama essas receitas de “ressignificações de iguarias”. “Embora tenha como base a culinária japonesa e nomeada como tal, na realidade são criações novas, com ingredientes próprios do lugar imigrado”, explica. “Assim, na ausência de soja, recriaram o molho shoyu a base de tucupi (líquido extraído da mandioca) e reinventaram o miso (pasta de soja), usando de feijão de praia.”
O mamão, por sua vez, normalmente consumido como fruta in natura ou como doce, para os japoneses do Amazonas, teve a função das verduras, já que haviam poucas opções delas na região.
Eles consumiam essa fruta ainda verde como refogado, como tsukemono (espécie de picles) e como sunomono (espécie de salada, normalmente feita com pepino e vinagre). Até as raízes de mamão foram aproveitadas para fazer o kinpira gobo (refogado à base de bardana – uma erva, cujas raízes são comestíveis, e as folhas, usadas em saladas).
A banana também passou por uma reinvenção criativa. “Ela bem madura, já em ponto de putrefação, serviu para fazer a pasta base para tsukemono (conserva de vegetais), dando a essa comida um sabor adocicado natural próprio da banana”, conta Linda.
“Com a farinha, guarnição obrigatória para o consumo de peixe na região amazônica, os imigrantes elaboraram o dango, espécie de bolinho, como substituto do pão. Com os peixes dos rios, fez-se sashimi, kamaboko (massa de peixe) e o feijão verde ou feijão de metro serviu como recheio de makizushi (sushi enrolado).”
Registro da memória
Linda conta que uma de suas motivações para realizar a pesquisa estava no fato de que seus pais e a maioria dos amigos e parentes estavam com idade acima dos 60 anos. “Isso me levou à decisão emergencial de entrevistar mais imigrantes, a fim de que os dados guardados na memória fossem investigados e registrados”, explica.
“Além disso, ser descendente de imigrantes – segunda geração (nissei) -, me levou a mergulhar no universo da imigração japonesa no pós-guerra no Amazonas, com o objetivo, dentre outros, de deixar um legado para posteridade escrito em português.”
Ela diz ainda que a decisão de escolher os hábitos alimentares como tema da pesquisa repousa no conjunto de riqueza que eles carregam, sobretudo relacionados aos aspectos sociais e culturais.
“Comer envolve características inerentes à complexidade humana, como prazer, sensações, emoções, afetividades, isto é, se encontra impregnado de elementos simbólicos como tradição, rito, costumes, comportamentos que caracterizam a cultura de uma etnia.”
Segundo Linda, o que seu trabalho traz de novo é a história da imigração japonesa no Amazonas por meio do olhar interno, ou seja, que tem como fonte primária os próprios imigrantes. “Eles revelaram pormenores, tais como as dificuldades, os desafios, o estranhamento com o novo país, que somente as pessoas que vivenciaram o fenômeno podem relatar”, diz a pesquisadora.
Além disso, diz Linda, a temática “hábitos alimentares” faz despertar esse passado que parecia estar esquecido, ativando a memória e evocando uma sequência de fatos vividos. Falar sobre assuntos alimentares fez emergir nas lembranças dos imigrantes fatos dos seus momentos iniciais na Amazônia.
Entre eles, Linda cita a construção das primeiras casas de palha para a moradia, os obstáculos para se deslocar até a cidade de Manaus, as dificuldades para encontrar ingredientes próprios para a culinária japonesa, os estranhamentos relativos à alimentação dos brasileiros da região.
Diversidade da culinária no Brasil
“Deu para perceber na feição de cada entrevistado que as reminiscências do passado, mesmo os momentos difíceis, proporcionavam nostalgia, pois representava um tempo em que tudo era novidade, o espaço, as pessoas, a vida bem diferente ao se comparar com a de sua terra natal”, conta a pesquisadora.
Para a orientadora de Linda, professora Leiko Matsubara Morales, do Departamento de Letras Orientais da USP, o trabalho de sua aluna tem o mérito de trazer uma história desconhecida, saindo do eixo São Paulo-Paraná.
“A pesquisa é importante não apenas porque a temática trata da alimentação, mas porque junto com ela traz a história das cidades e de suas peculiaridades, somando à área de Estudos Japoneses.”, diz.
Segundo Leiko, o trabalho não apenas resgatou algo que estava submerso, mas atribuiu o devido valor cultural, reconhecendo a culinária daquela região como parte da diversidade dos hábitos alimentares do Brasil.
“A criatividade de que os japoneses lançaram mão nos mostra o quanto eles buscaram uma forma de vencer as adversidades impostas pela natureza, que não é apenas decorrência da diferença física, mas cultural e material”, explica.
Leiko diz ainda que, ao levantar os dados, Linda conseguiu salvar várias informações que não se encontram em nenhum livro de imigração, pois a maioria foi escrita por aqueles que vivem nas regiões onde a comunidade nikkei é mais densa, como os estados de São Paulo e do Paraná.
“Apesar de ter ido um contingente razoável de imigrantes, descendentes e até mesmo de executivos japoneses para a Amazônia, devido à riqueza da zona franca de Manaus, há poucos trabalhos dessa natureza.”
Fonte: www.bbc.com/